Efetividade do Processo,
Conceitos Indeterminados e Direito Jurisprudencial
Frederico
Ricardo de Almeida Neves
Desembargador
do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco
1. Efetividade
Não há a
mais mínima dúvida de que o Direito à Jurisdição
é um Direito Fundamental, derivado do Direito Natural, inserto, explicitamente,
nas mais modernas Constituições do mundo. Mas, seria escusado
realçar, não basta que seja assegurado ao cidadão o direito
a aceder aos órgãos jurisdicionais: é de mister que a atividade
do Poder Judiciário, além de segura, seja pautada na eficiência
e na tempestividade.
Para
os portadores da bandeira da efetividade do processo, a palavra de ordem, na
atualidade, é a do acesso à Justiça,
entendida essa locução não apenas como reveladora da necessidade
imperiosa de serem criados novos mecanismos que facilitem o ingresso do cidadão
no Poder Judiciário, mas, também e fundamentalmente, como indicadora
precisa do pensamento e dos anseios da sociedade moderna, no sentido de não
mais admitir uma Justiça tarda, atravancada e, por isso, ineficiente.
O princípio da
efetividade encontra histórica consagração no artigo 6º,
nº 1, da Convenção Européia dos Direitos do Homem,
onde está explícita a necessidade de a demanda ser examinada em
prazo razoável.
Eis,
no que interessa, o que dispõe o citado dispositivo da CEDH:
“Julgamento
eqüitativo e célere. 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua
causa seja examinada, eqüitativa e publicamente, num prazo razoável
por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá,
quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações
de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação
em matéria penal dirigida contra ela...”
Foi,
reconhecidamente, a partir da edição desse diploma legal que o
direito ao processo sem dilações indevidas passou a ser concebido
como um direito subjetivo, de caráter autônomo, de todos os membros
da coletividade, à prestação jurisdicional dentro de um
prazo razoável, decorrente da proibição do non
liquet, vale dizer, do dever que têm os agentes
do Poder Judiciário de julgar as causas.
As Constituições
portuguesa (artigo 20, nº 4), e espanhola (artigo 24, nº 2), navegaram
essas mesmas águas, ao estabelecerem, às expressas, o Direito
à consecução de uma decisão judicial em prazo razoável
ou sem dilações indevidas, respectivamente.
No
Brasil, das garantias constitucionais do devido processo legal e da inafastabilidade
do controle do Poder Judiciário (artigo 5º, incisos XXXV e LIV,
da CRFB), deflui cristalino – de entre outros – o princípio
da prestação jurisdicional em tempo hábil. Aliás,
delineia-se oportuno lembrar que o Brasil é signatário da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José da Costa
Rica, aos 22.11.69, em cujo artigo 8º, nº 1, está previsto
que “toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido por lei anterior, na defesa de qualquer
acusação penal contra ela formulada, ou para a determinação
de seus direitos e obrigações, de ordem civil, trabalhista, fiscal
ou de qualquer outra natureza...”
Ainda uma observação:
o Plenário da Câmara dos Deputados, em abril do ano 2000, aprovou,
em primeiro turno, Proposta de Emenda à Constituição da
República, para Reforma do Poder Judiciário, onde está
contida, expressamente, a “garantia a todos de razoável duração
do processo e dos meios necessários à celeridade de sua tramitação”
2. Conceito jurídico
indeterminado
O Direito Fundamental
de toda pessoa a que sua causa se resolva dentro de um prazo razoável
ou sem dilações indevidas comporta a utilização
de um conceito jurídico indeterminado, que há de ser dotado de
conteúdo concreto, em cada caso, através da atuação
de órgãos da jurisdição e mediante o atendimento
a certos requisitos objetivos elencados pela doutrina fixada pelo Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem.
De fato, os conceitos
de razoabilidade do prazo e de dilação indevida carecem de limites
precisos, tratando-se de noções de índole valorativa e,
por isso, notoriamente vagas e indeterminadas, que dependem das circunstâncias
de cada caso para a devida concretização.
Sustenta
a STC
nº 73/1992, de 13 de maio, ao versar sobre o artigo 24, nº 2, da Constituição
espanhola, que o direito a um processo sem dilações indevidas
“incorpora em seu enunciado um conceito jurídico indeterminado
cujo conteúdo concreto há de ser alcançado mediante a aplicação
às circunstâncias específicas de cada caso dos fatores objetivos
e subjetivos que sejam congruentes com seu enunciado genérico”
A
jurisprudência do TEDH
firmou-se no sentido de que, para precisar a razoabilidade do prazo, devem ser
levados em consideração os seguintes elementos: a própria
duração do processo; a conduta dos litigantes; a complexidade
do litígio; a atuação das autoridades judiciais.
Sobre
o assunto, inolvidável é a lição do constitucionalista
lusitano Jorge Miranda, para quem “O Direito de acesso aos tribunais envolve
o direito de obter uma decisão jurisdicional em prazo razoável
(Art. 6º da Convenção Européia), o qual tem de ser
avaliado em função da complexidade maior ou menor da causa, da
relevância da própria decisão e da natureza dos direitos
e interesses em questão” (...) “Designadamente, o argüido
em processo penal deve ser julgado no mais curto prazo compatível com
as garantias da defesa (Art. 32º, nº 2, da Constituição),
mas há outros casos em que sem processos céleres, expeditos e
eficazes não se dá protecção jurídica adequada...”
No
particular, merece, outrossim, alusão especial, o ensinamento de Luis
Guilherme Catarino, segundo o qual “o TEDH criou pautas interpretativas
para apreciar a razoabilidade ou irrazoabilidade da duração de
um processo, de que nos devemos socorrer para concretizar e conceptualizar o
conceito. Elas assentam fundamentalmente nos seguintes critérios: circunstâncias
do caso, tendo em atenção a complexidade do processo; comportamento
do recorrente e das Autoridades do processo; forma como o assunto foi tratado
pelas Autoridades judiciais e administrativas, - conseqüências para
as partes. II. Estas pautas ajudarão a preencher em concreto (nunca em
abstrato) a questão de facto, verificando períodos temporais sem
diligências, ponderando a complexidade do caso mas também o comportamento
processual daquele que reclama a indemnização – neste último
caso, e no seguimento das Recomendações do Conselho da Europa,
penalizando as partes pelos comportamentos dilatórios que violam o dever
de lealdade a que estão obrigadas no decurso do processo, e a condução
do processo pelas Autoridade”
A
violação ao Direito a uma solução tempestiva da
controvérsia levada a Juízo, faz nascer o dever de indenizar do
Estado transgressor do preceito (artigo 121 da Constituição espanhola
e artigo 22 da Constituição portuguesa). Para Miguel Teixeira
de Sousa, “...a concessão deste direito à celeridade processual
possui, para além de qualquer âmbito programático, um sentido
preceptivo bem determinado, pelo que a parte prejudicada com a falta de decisão
da causa num prazo razoável por motivos relacionados com os serviços
de administração da justiça tem direito a ser indemnizada
pelo Estado por todos os prejuízos sofridos. Esta responsabilidade do
Estado é objetiva, ou seja, é independente de qualquer negligência
ou dolo do juiz da causa ou dos funcionários judiciais...”
Também
no Brasil surgem vozes uníssonas defendendo a responsabilidade do Estado,
por danos morais, pela morosidade na prestação da tutela jurisdicional
Na
Europa Ocidental, embora tenha havido louváveis esforços para
a introdução de medidas relativas à denominada regra da
aceleração processual, a Corte Européia dos Direitos do
Homem, sobretudo durante os anos oitenta, reconhecendo o direito ao processo
sem dilações indevidas, impôs reiteradas condenações
a vários países, obrigando-os à indenização
pelo dano moral derivante do estado de prolongada ansiedade pelo êxito
da demanda
O
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao menos em duas ocasiões, condenou
a Espanha por inobservância ao princípio fundamental do prazo razoável,
o que ocorreu através das sentenças de Estrasburgo 2/1992/347/240,
de 23 de junho de 1993 (caso da família RUIZ-MATEOS), e 16/1998/160/216,
de 07 de Julho de 1989 (caso da Alimentaria Sanders S.A)
Em
passado recente, também Portugal – envolvido em grave crise institucional
– foi condenado pelo TEDH a indenizar os queixosos, por violação
do artigo 6-1, da Convenção Européia.
2.1 Conceito indeterminado:
tendência hodierna
É
bem nítida, desde tempos remotos, a tendência, hoje imoderada,
à utilização, pelas legislações, de conceitos
indeterminados, o que se verifica, na conformidade dos ensinamentos do civilista
português Antônio Menezes Cordeiro, “sempre que um conceito
não permita comunicações claras quanto ao seu conteúdo,
por polissemia, vaguidade, ambigüidade, porosidade ou esvaziamento: polissemia
quando tenha vários sentidos, vaguidade quando permita uma informação
de extensão larga e compreensão escassa, ambigüidade quando
possa reportar-se a mais de um dos elementos integrados na proposição
onde o conceito se insira, porosidade quando ocorra uma evolução
semântica com todo um percurso onde o sentido do termo se deva encontrar
e esvaziamento quando falta qualquer sentido útil”
2.2 Conceitos indeterminados
e o Novo Código Civil
Da leitura atenta do texto
do novo Código Civil Brasileiro (Lei n.º 10.406, de 10.01.02), percebe-se,
facilmente, que o legislador pátrio, utilizou-se, com grande freqüência,
na redação de inúmeros dispositivos inovadores, de conceitos
indeterminados e de cláusulas gerais, quiçá no propósito
de atribuir ao juiz um papel mais interventor na constituição
do direito, por ocasião da solução definitiva do conflito
intersubjetivo de interesses.
Retenham-se
as seguintes locuções extraídas do novel diploma substantivo
civil: o juiz, “quando julgar conveniente” (artigo 29); “vantagens
especiais” (artigo 55); “conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração” (artigo 113); “for maliciosamente
obstado pela parte a quem desfavorecer” (artigo 129); “fundado temor
de dano iminente e considerável à sua pessoa...” (artigo
151); “com base nas circunstâncias” (artigo 151, parágrafo
único); assume obrigação “excessivamente onerosa”
(artigo 156); “sob premente necessidade” (artigo 157); se obriga
a prestação “manifestamente desproporcional” (artigo
157); se for oferecido “suplemento suficiente” (artigo 157, §
2º); “cuja garantia se tornar insuficiente” (artigo 158, §
1º); “excede manifestamente os limites expostos” (artigo 187);
“quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário,
não excedendo os limites do indispensável” (artigo 187,
parágrafo único); “o que razoavelmente deixou de lucrar”
(artigo 402); “em razão e nos limites da função social
do contrato” (artigo 421); “investimentos consideráveis para
sua execução” (artigo 473, parágrafo único);
“se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente
onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis” (artigo 478); “oferecendo-se o réu
a modificar eqüitativamente as condições do contrato”
(artigo 479); a fim de evitar a “onerosidade excessiva” (artigo
480); “se o aluguel arbitrado for manifestamente excessivo, poderá
o juiz reduzi-lo” (artigo 575, parágrafo único); “sofrer
notória mudança em sua situação econômica”
(artigo 590); fique comprovada a “inconveniência ou a excessiva
onerosidade de execução do projeto em sua forma originária”
(artigo 621); não abrange “alterações de pouca monta”
(artigo 621, parágrafo único); “mais indenização
razoável” (artigo 623); ou se houver “motivo razoável
de suspeitar” (artigo 633); “por motivo plausível”
(artigo 635); “o lucro que razoavelmente se podia esperar” (artigo
696); “prazo compatível” (artigo 720); “o juiz decidirá
da razoabilidade do prazo” (artigo 720, parágrafo único);
“reduzirá eqüitativamente a indenização”
(artigo 738, parágrafo único); “quando fizer operações
arriscadas” (artigo 868); “cuja necessidade fosse manifesta”
(artigo 937); “se houver excessiva desproporção” (artigo
944, parágrafo único); “poderá o juiz reduzir, eqüitativamente,
a indenização” (artigo 944, parágrafo único);
“contanto que este não se avantaje àquele” (artigo
952, parágrafo único); “se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área” (...) “na posse ininterrupta e
de boa-sé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número
de pessoas” (artigo 1.228, § 4º); “justa indenização”
(artigo 1.228, § 5º); e “o valor da construção
exceder consideravelmente” (artigo 1.258, parágrafo único);
de “indenização cabal” (artigo 1.285); “sempre
que haja receio fundado” (artigo 1.433, inciso VI); o juiz deferirá
a sua guarda à pessoa que revele “compatibilidade com a natureza
da medida” (artigo 1.584, parágrafo único); “provado
que não são tratados convenientemente” (artigo 1.588); “na
conveniência pública, contínua e duradoura” (artigo
1.723); se o patrimônio do menor for “de valor considerável”
(artigo 1.745, parágrafo único); os imóveis pertencentes
a menores sob tutela somente podem ser vendidos “quando houver manifesta
vantagem...” (artigo 1.750)
3. Direito jurisprudencial
Ressalta com solar clareza
que o legislador civil brasileiro lançou mão de cláusulas
gerais (boa-fé, eqüidade, função social do contrato,
etc.), referindo a conceitos indeterminados (excessiva onerosidade, premente
necessidade, notória mudança, etc.), que devem ser entendidos
como cláusulas abertas, cuja concretização somente será
possível no julgamento do caso concreto.
O
Código Civil Holandês, instituiu, em seu artigo 6.248, uma norma
aberta da maior significação e importância, conhecida como
a regra da “razão e da eqüidade”, deduzida
do princípio segundo o qual todos os direitos contratuais devem ser executados
de boa-fé. Essa norma aberta da “razão e da eqüidade”
tem força decisiva porque outorga ao juiz um instrumento sobremodo eficiente
na busca do resultado justo para as partes.
Com isso, a lei confia
ao intérprete-aplicador, com absoluta exclusividade e larga margem de
liberdade, a inteira responsabilidade de encontrar, diante de um modelo vago,
a decisão justa para cada hipótese levada à decisão
judicial.
Dita
margem de livre apreciação encontra ainda justificativa no fato
de que a atividade de realização do direito passa, necessária
e obrigatoriamente, até como alternativa aos esquemas clássicos,
por dois ângulos fundamentais de análise, quais sejam: o de que
a realização do direito é unitária e o da natureza
constituinte da decisão
Os
conceitos indeterminados e as cláusulas abertas apelam, naturalmente,
a um esforço valorativo dos tribunais na sua concretização,
o que significa dizer que, também o direito substancial, ao menos na
realidade brasileira, tende a tornar-se, num significativo âmbito da sua
aplicação, um DIREITO JURISPRUDENCIAL
Daí
infere-se a necessidade, sempre crescente, de as Escolas Superiores de Magistratura
voltarem sua atenção para a realização, cada vez
mais freqüente, de cursos de aperfeiçoamento de juízes, visando
deixá-los mais bem preparados para o enfrentamento da difícil
missão de julgar, sobretudo quando a regra primacialmente vocacionada
para a solução do caso concreto, mostrar-se aberta, contendo conceitos
jurídicos carecidos de preenchimento,
porque, aí, o órgão jurisdicional será instado,
não para simplesmente dizer o Direito objetivo pré-existente aplicável
à espécie; mas mais, ao Magistrado estará reservada a grande
e inarredável incumbência de constituir o Direito, por ocasião
do julgamento, sendo importante deixar sublinhado que, em casos tais, o ordenamento
jurídico como um todo, os princípios da isonomia
e da proporcionalidade, bem assim a sinépica
– enquanto critério metodológico basilar de concretização
- devem ser chamados a depor.
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